TV digital: uma farsa chamada ISDTV

Gustavo Gindre
Observatório do Direito à Comunicação

No final de março, a Sociedade de Engenharia de Televisão (SET) organizou evento em São Paulo, com a presença de radiodifusores e do governo, para divulgar as normas técnicas do International System for Digital TV (ISDTV), o novo nome do Sistema Brasileiro de TV Digital (SBTVD). Tais normas servirão de orientação para a indústria produzir os equipamentos de transmissão e recepção da futura televisão digital aberta no Brasil.

Com este nome fantasia, radiodifusores e o governo querem demonstrar que não se trata da simples adoção de tecnologias importadas (no caso, o ISDB japonês). Segundo o ministro Hélio Costa, o país acaba de produzir um sistema "nipo-brasileiro".
Agora, as emissoras de TV e os diversos outros meios de comunicação a elas associados irão repetir esta história ad nauseum, na aposta de que uma mentira contada muitas vezes acaba assumindo ares de verdade. Mas, será mesmo que o ISDTV é uma produção conjunta do Brasil e do Japão?

Antes, porém, cabe analisar onde teria sido produzido o tal ISDTV.

No dia 23 de novembro de 2006 foi criado o Fórum de TV Digital e seu comitê executivo era integrado por uma empresa de software (Potis), quatro outras que farão os receptores (Philips, Gradiente, Semp e Samsung), duas indústrias de transmissores (Linear e Telavo), quatro radiodifusores (Globo, SBT, Record e Rede TV!) e duas universidades (PUC-Rio e UFRGS). Em momento algum a sociedade civil teve acesso aos debates travados no interior do Fórum de TV Digital que, não custa lembrar, definia o futuro de um serviço explorado mediante concessão pública.

Dias após a criação do Fórum de TV Digital, o representante da UFRGS, Sérgio Bampi, anunciou que se afastaria por estar descontente com o pouco espaço reservado à comunidade acadêmica. E passados somente quatro meses de sua instalação, o Fórum de TV Digital anunciou a conclusão dos trabalhos, com a criação de um sistema “nipo-brasileiro” de televisão digital.

O caráter híbrido desse sistema (japonês e brasileiro) supostamente se deveria ao emprego de tecnologias que foram desenvolvidas pelas universidades brasileiras por conta de recursos recebidos pela Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP), durante a fase de pesquisa do SBTVD.

É verdade que vários consórcios de pesquisadores alcançaram resultados expressivos. A PUC-RS, por exemplo, desenvolveu uma alternativa de padrão de modulação, conhecido como Sorcer. Mas, a opção pelo sistema japonês acabou impedindo a adoção do Sorcer e o fato é que existem pouquíssimas inovações brasileiras no interior do tal ISDTV.

Indagados, radiodifusores e representantes do governo só conseguem citar duas.

Uma delas teria sido a implantação do codec de compressão de vídeo MPEG-4 (H264) na modulação japonesa (BST-OFDM). Mas, ambas as tecnologias são anteriores ao ISDTV e a contribuição brasileira, neste caso, se resume a fazer o ISDB japonês utilizar o H264.

A outra seria o middleware [1] Ginga. O Ginga, na verdade, é a soma de dois outros middlewares, desenvolvidos pela UFPB e pela PUC-Rio. A porção paraibana (anteriormente conhecida como FlexTV) é, em grande medida, a adoção da normatização européia Globally Executable MHP (GEM). Somente a porção carioca (o Maestro), produzida a partir da linguagem Nested Context Language (NCL), pode ser considerada um desenvolvimento realmente nacional.

Mas, cabe lembrar que nem mesmo a adoção do Ginga está garantida, uma vez que as normas técnicas do Fórum de TV Digital também incluíram o middleware japonês Broadcast Markup Language (BML). Mas, apenas a inclusão do Ginga (ainda que importante) é muito pouco para que possamos afirmar que se trata de um sistema “nipo-brasileiro”, como parece desejar o ministro Hélio Costa.

Cabe lembrar que no interior do sistema DVB, por exemplo, existem diversas implementações diferentes, sem que sejam consideradas como novos sistemas internacionais.

Com o uso do apelido ISDTV, governo e radiodifusores pretendem esconder o fato de que o Brasil adotou, sem compensações comerciais e sem prever transferência de tecnologias, várias tecnologias importadas que se encontram no interior do ISDB e que, para os engenheiros brasileiros, continuarão sendo caixas-pretas.

Até prova em contrário, e apesar da propaganda oficial, existem apenas quatro sistemas de TV digital aberta: ATSC (adotado nos Estados Unidos, Canadá, México, Guatemala, Honduras e Coréia do Sul), DVB-T (utilizado em cerca de 60 países, incluindo União Européia, Rússia, Índia, Filipinas, Malásia, Arábia Saudita, Turquia, Vietnã, Nova Zelândia, Austrália e Irã), BMD (chinês) e ISDB (empregado no Japão e no Brasil).

*

[1] Segundo a Wikipédia, middleware, no campo de computação distribuída, é um programa de computador que faz a mediação entre outros softwares. É utilizado para mover informações entre programas ocultando do programador diferenças de protocolos de comunicação, plataformas e dependências do sistema operacional.

* Gustavo Gindre é membro do Coletivo Intervozes, do Núcleo de Pesquisa, Estudo e Formação (NUPEF), coordenador-executivo do Instituto de Estudos e Projetos em Comunicação e Cultura (INDECS) e conselheiro eleito do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGIbr).

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