depois de morto descobriu que era corno

respirou fundo, como um fumante, depois de alguns dias sem seu vicio. Olhou ao lado sem mexer a cabeça, apenas com os olhos e respirou profundamente, e novamente, como se fosse morrer em segundos e aquele ar que ainda alimentava a sua consciencia foi respirado como o gole da água que quebra o seco da boca e da lingua, naquele que está seco e sob o sol.

aquele ar gelado passando pelas narinas, meio que gelando a garganta, enchendo os pulmões, quase assibalando o direito e esquerdo, era como o vinho mexendo com o paladar do apreciador, do sabor daquele beijo apaixonado.

era a quinta ou sexta vez que o ar entrava e saia com prazer em seu corpo. Ele tinha espasmos. Ele fumava o ar com prazer de um viciado em ar. O olhar fixo na parede branca secava seu olhos castanhos. Ele ainda usava de toda a sua força para encher os pulmões: aos poucos seus braços enfraqueceram por completo, cedendo um corpo pesado. Quando seu último suspiro aconteceu, seu braço pesou uma tonelada:ficou aquela sensação gelada...

não aconteceu mais nada. nasceu, viveu, riu, chorou, amou, odiou, pensou, intempestou e morreu em um instante, sem levar nem ao menos o último suspiro.

o corpo ficou ali largado, gelado, seu rosto ainda marcava um rosto de boa pessoa, sob a cama com lençois brancos, tão limpos que não tinham estórias mas histórias. Aquele lençol do hospital, certamente nunca sentiu o gosto do suor do amor carnal, mas era expert no quente/frio amor espiritual. Mesmo os que ele entregou ao diabo, manteve-se distante e limpo, sem o cheiro da lavanda dos anjos e o enxofre do coisa ruim. O que separa a vida da morte, não é o céu ou inferno, mas o lençol.

se aquele último suspiro foi acompanhado por anjos ou demonios, naquela hora, ninguem sabe, mas sentiu-se, um rapido apagar de luzes, mais rapido que um piscar, uma boa sensação, mas também de solidão... não aconteceu mais nada.

ele ali deitado, mole, com sua corte chorando, lamentando. Aquela 'tiazinha ali' que todo mundo sabia que não ia com a cara do morto, chorava como se fosse amante. Certamente o morto, do outro lado, deve já estar pensando em como iria ficar aquele corpo de morto inutil enfeitado para o enterro. Nunca se arrumou na vida e no último instante, aquele monte de flor que comemora sua vida, cheirando a morte, enfeitando um corpo morto.

a única hora em que aquele cara iria ser unânimidade ele não poderia aproveitar. Todo mundo em pé e ele ali deitado no meio do salão, como brincadeira dos tempos de criança, para marcar no chão os movimentos de pés e braços: uma coisa ridicula, pois estava com os braços cruzados. Cristo pregado na cruz e ele com as mãos amarradas com o terço.

Imagine o morto no meio do velorio e aquele monte de gente que voce gosta ali em pé. Aquela gostosona que ele quis comer a vida inteira, ali ainda gostosona e ele, nem morto, apesar dela estar chorando... Se fosse eu, mesmo arriscando ir para o inferno,... 'bem feito'. 'Não deu a vida inteira agora chorando em meu velorio: humilhante', analisaria.

pior que isso deve ser o cara morto ali no proprio velorio, observando os cara de pau dos seus amigos, conversando entre si, discutindo quem vai comer a viuva 'inteirona', primeiro. É humilhante morrer. Pior ainda descobrir que o padrinho do filho mais velho, come a mulher viuva, desde antes da criança nascer. "Agora descobri por que ele quis ajudar na faculdade da criança", pensaria.

aquele cara que enrolou em devolver a grana emprestada, dando uma de bonzinho, dizendo que havia perdido um dinheiro emprestado contigo ali morto endividado e corno. Vão o dinheiro do falecido, para pagar as despezas do velorio, onde todos estão se exibindo, menos o morto. Pagar e ainda descobrir que era cornudo; os amigos querem comer a viuva; o filho pode ter 'dna' do padrinho e a sogra, que nunca gostou dele, dizendo que o morto era o genro preferido.

na hora do enterro, uma tragédia. A vaca da viuva desmaiou [para fazer cena?]. O amigão, padrinho e eventual pai do filho da puta daquela vaca, ajudando 'a vagabunda'. Todo mundo que chorava tinha verdades e mentiras nas emoções. Haviam pessoas de sempre, que acompanham todos os enterros da cidade. Choravam também, sem saber quem era o morto e das alcovas da viuva que todos abraçaram e beijaram. Ela parecia a rainha da bateria nota 10, depois do desfile. O morto era o abre alas e carro alegórico. Sabe-se que o espirito do morto, duvidava que passaria aquele par de chifres na sepultura. Se o diabo existia deveria estar dizendo ao falecido. "Que belo par de guampas. É guzerá é zebu?"

enterraram o morto e não aconteceu mais nada! A viuva foi com os pais e o morto ficou ali no campo santo, coberto por flores e coroas que os amigos e as empresas dos amigos mandaram. Ao menos era um corno bem relacionado.

O coveiro/pedreiro ficou alisando uma massa de cimento molhada que contem átomos hidrogenio e oxigênio, aquele mesmo que ele tentou levar para aquele sepulcro, cheio de ossos de gerações que foram antes. Certamente todos descobriram coisas, no passar de uma vida em pé, de cabeça erguida, para uma eternidade deitada, sabe-se lá por quanto tempo.

nada mais aconteceu com os que viveram... Com o tempo 'da eternidade' de alguns meses, todos se esqueceram do morto, inclusive a viuva, que por ser bela e jovem, com oito meses, estava recomeçando a vida, com uma boa pensão deixada pelo viuvo.

a viuva, 'aquela vagabunda', continua saindo com o padrinho do 'filho da puta'; mas a 'vaca' viuva, está casada com um dos amigos da turma desde os tempos do ginásio, um dos poucos que ficou 'rico'. Sua riqueza cresce à medida que engrossa o pescoço para suportar o peso dos tempos que virão...

o falecido não há de se ofender, mas a viuva vagabunda é mesmo muito boa, gostosa e simpatica, sempre sorridente, sociável. Uma verdadeira dama.

nada mais aconteceu. Todos morrerem e a história se perdeu nos tempos...Dizem que no inferno tem muito cheiro de chifre queimado, deve ser por causa disso...

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